Ricardo Lacerda – Keynes está de volta, para a felicidade geral

Ricardo Lacerda
Economista e professor da UFS

O debate econômico atual no Hemisfério Norte não deixa margem à dúvida, está em pleno andamento uma importante virada sobre a compreensão do papel do estado no desenvolvimento econômico e social que poderia ser sintetizada na seguinte ordem do dia: o keynesianismo está de volta. Depois de 40 anos de hegemonia sufocante da perspectiva neoliberal, os fracassos reiterados do sistema de mercados crescentemente desregulados em entregar as promessas de promover crescimento econômico sustentado, estável, inclusivo em termos socais e expansivo em direção a novas áreas do globo terrestre exauriram as suas possibilidades.

A agonia do sistema de mercados desregulados se iniciou ainda em 2008 com o espocar da crise financeira em que naufragou a economia mundial. Todavia, naquele momento, as lideranças políticas dos países ricos e os dirigentes das agências multilaterais de desenvolvimento titubearam em realizar as mudanças necessárias em direção a uma nova etapa de maior regulação da economia mundial e sucumbiram mais uma vez à ideologia neoliberal e aos interesses dos detentores da riqueza financeira. Economistas notáveis como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos premiados pelo Prêmio Nobel, que apontavam incansavelmente os fracassos da globalização desregulada em promover crescimento justo socialmente e sustentado econômica e ambientalmente, eram vozes minoritárias e suas mensagens não ultrapassavam os muros das universidades ou dos movimentos populares mais engajados socialmente.

As insatisfações com o sistema neoliberal foram se acumulando com a deterioração crescente do mercado de trabalho nos países centrais, que se expressava no incremento exponencial das relações de trabalho precarizadas, no crescimento do número de pessoas imersas na situação de pobreza e no imenso contingente de pessoas residindo nas ruas que se formou nos principais centros urbanos dos países ricos, muito especialmente naquele país que simbolizava e liderava ideologicamente a propagação mundial das políticas neoliberais. O debate sobre as crescentes desigualdades de renda entre ricos e pobres, que emergiu a partir dos trabalhos do economista francês Thomas Piketty, foram essenciais para assentar nas mesas acadêmicas e na mente da população a injustiça crescente do sistema de mercados desregulados.

Se a insatisfação crescente com a globalização financeira propiciou a emergência de líderes populistas de extrema direita nos diversos continentes, tendo o presidente norte americano Donald Trump como representante maior, esse ciclo político, aparentemente, começou a se esgotar.

Plano Biden
A manifestação mais consistente e robusta da virada keynesiana foi, sem sombra de dúvidas, o recente pacote de estímulos do presidente Joe Biden, dos EUA, que alcançou a notável soma de dois trilhões de dólares. Antes de sua submissão ao congresso o conjunto de medidas sofreu ataques diversos, com destaque para as manifestações incisivas do economista Lawrence Summers, exatamente aquele assessor econômico que fez o então presidente Obama titubear em adotar medidas mais duras de enfrentamento ao poderio do setor financeiro. Dessa vez, todavia, o presidente recém-empossado, Joe Biden, não se deixou impressionar pela mensagem alarmista do economista de que um pacote tão robusto teria impactos inflacionários desestabilizadores da economia. A secretária do tesouro americana, a experimentada economista Janet Yellen, presidente do Banco Central (FED) na administração Obama, descartou recuar e afirmou sem rodeios que, dessa vez, se o governo tivesse que errar seria para mais e não para menos, como aconteceu em 2008.

Joe Biden, presidente dos EUA

Como até mesmo lideranças do setor financeiro e de empresas da mídia corporativa que costumam se alinhar a esse segmento reconhecem, o alcance das medidas anunciadas pelo governo Biden significam uma virada de grande alcance na política econômica, não apenas porque enfrentam os postulados das medidas fiscalistas que colocavam a austeridade fiscal no altar da sacralidade, como desenham um conjunto de linhas de ação que reposiciona o papel do estado no desenvolvimento econômico e social do país. O Plano Biden contempla investimentos de US$ 750 bilhões em infraestrutura produtiva em estradas, ferrovias e transmissão de energia, US$ 189 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (P&D), avança em direção ao estímulo a setores industriais considerados estratégicos e mais US$ 100 bilhões em infraestrutura de internet de banda larga. Aproximando-se da plataforma dos ambientalistas, contempla investimentos em energias renováveis, veículos elétricos e saneamento básico em uma revirada ambiciosa em termos de atuação do governo na área econômica.

Efeito demonstração
O efeito demonstração da iniciativa norte americana sobre a gestão econômica dos países ricos e mesmo dos países em desenvolvimento como o nosso deverá ser avassalador, apesar dos mugidos e do aparente pouco caso de economistas brasileiros vinculados ao mercado financeiro e de seus porta vozes na mídia corporativa, como retratado entre nós no editorial do jornal Folha de São Paulo, de 04 de abril de 2021. O referido editorial, apesar de reconhecer que o Megapacote de Biden visa revigorar o capitalismo dos EUA, em seguida vaticina que o Brasil não teria a oportunidade de seguir caminho similar.


Do ponto de vista brasileiro, a virada keynesiana que se apresenta no Hemisfério do Norte abre uma senda de luta interna para se contrapor não apenas ao desmonte do estado promovido pelas políticas neoliberais que foi retomado em ritmo acelerado depois do golpe parlamentar de 2016. A possibilidade aberta pela virada na política econômica nos EUA vai além disso, cria condições concretas para a construção de um novo pacto político e social em favor de uma nova etapa de desenvolvimento de forte conteúdo desenvolvimentista e de inclusão social, em linha com as novas demandas da sociedade, de afirmação do país interna e externamente. Essa afirmação deve contemplar não apenas o desenvolvimento produtivo, por meio da capacitação tecnológica, científica e empresarial, como a construção de uma sociedade mais homogênea, menos desigual, em uma nova perspectiva na relação com os recursos naturais e um aprofundamento interno nas relações democráticas. Sim, Keynes está de volta na política econômica e social e chegará ao Brasil. Sim, retornará para a felicidade geral da nação.

*Assessor Econômico da Secretaria Geral de Governo de Sergipe e integrante da ABED- Associação Brasileira de Economistas pela Democracia

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