“Rota da Farinha” em Sergipe: nota Turística e Histórica

Amâncio Cardoso
Professor do IFS

Recentemente, tem havido uma revalorização da mandioca (Manihot esculenta), e de seus derivados, pelo Poder Legislativo de Sergipe e pelo setor do Turismo. Exemplo disso foi a aprovação, no dia 09 de junho de 2020, pela Assembleia Legislativa de Sergipe (ALESE) do Projeto de Lei nº 187/2019, que declara o “Festival da Mandioca” da cidade de Lagarto/SE como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, incluindo o festival no calendário oficial de eventos.

Outro exemplo de revalorização da mandioca em Sergipe, foi mais uma aprovação, no dia 13 de outubro de 2020, também pela ALESE, do Projeto de Lei nº 266/2020, de autoria do Poder Executivo. Esta lei institui uma rota turística pelos municípios de São Domingos, Macambira, Campo do Brito, Itabaiana, Moita Bonita, Ribeirópolis, Santa Rosa de Lima, Malhador, Nossa Senhora das Dores e Lagarto, denominada “Rota da Farinha”. De acordo com a propositura, essa rota envolve uma extensão de 129 km, passando pelas rodovias SE-170, SE-240 e SE-225, abrangendo cerca de trezentos mil habitantes.

Além das paisagens naturais da região, a “Rota da Farinha” se propõe a apresentar como atrativos as técnicas de cultivo agrícola da mandioca, os bens materiais das casas de farinha e o processo de sua produção, bem como a degustação de várias iguarias derivadas – tapioca, beiju, macasado, sarolho, pé de moleque, bolo, mingau, bolacha e pratos da culinária regional que usam a farinha e/ou a folha da mandioca como ingredientes, a exemplo do pirão e da maniçoba.

A execução do novo roteiro turístico possibilitará aos visitantes uma experiência significativa, unindo trilhas em áreas rurais, visitas guiadas às roças e casas de farinha, e experiências gastronômicas. Espera-se, dessa forma, potencializar as atividades turísticas nos municípios que compõem a rota da farinha.

Em Sergipe, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, a área plantada de mandioca foi de 12.123 hectares. O município de Campo do Brito, que faz parte da “Rota da Farinha”, por exemplo, produziu em média 72 toneladas de farinha por dia e 2.160 toneladas por mês. Neste sentido, a cultura multissecular da mandioca é uma das molas propulsoras da economia na região.

De sua importância econômica, passemos agora para os usos e costumes dessa importante raiz no passado sergipense.

A mandioca e seus derivados eram alimentos basilares dos primeiros habitantes, os índios. Depois, durante a colonização, ela também alimentou portugueses e outros europeus. A raiz indígena era chamada pelos lusitanos de “pão da terra”, para diferenciá-la do pão de trigo do Velho Mundo. Muitos cronistas do período colonial anotaram a constante presença da mandioca e da farinha através de cartas, memórias e notícias.

Em 1575, por exemplo, o padre Inácio de Tolosa (1533-1611), na “carta ao geral da Companhia de Jesus”, registrou o esforço da missão catequética dos jesuítas Gaspar Lourenço e João Solônio entre os aborígenes do território sergipano. Num trecho da carta, Tolosa escreve que os dois inacianos foram bem recepcionados numa aldeia, e por isso trouxeram-lhe “farinha”. Vê-se, assim, que a farinha de mandioca era alimento importante nas horas de bem estar dos moradores das terras entre os rios Itanhy (Real) e Opará (São Francisco).

Mas o uso da farinha também era comum durante épocas de crise. Noutra carta de 1576, por exemplo, ainda sobre a missão jesuítica nas terras do rio Real, o padre Luiz da Fonseca informou ao geral da Companhia de Jesus que a fome grassava pela região. Por conta disso, os índios trouxeram para os esfomeados missionários, que vinham a pé da Bahia, “quase toda a sua farinha, reservando muito pouco para o próprio consumo”. Além da solidariedade evidente dos nativos para com os inacianos, nota-se que a farinha era alimento lenitivo nos períodos críticos.

A cultura da mandioca em Sergipe atravessou os séculos. No XIX, por exemplo, o presbítero Marcos Antônio de Souza (1771-1842), em sua “Memória sobre a Capitania de Sergipe” publicada em 1808, escreveu que na então Vila do Lagarto, que faz parte da recente “Rota da Farinha”, seus habitantes “se empregam em plantar mandioca e vender farinha”.

Ainda no oitocentos, a farinha de mandioca também atravessou fronteiras. No ano de 1826, o padre Inácio Antônio Dormundo, em sua “Notícia topográfica sobre a província de Sergipe”, relatou que um dos itens de exportação para a Bahia era a nossa farinha. Desde então o produto sergipano da Manihot também matou a fome dos vizinhos baianos.

Já no século XX, nas décadas de 1970 e 1980, a professora Núbia Marques (1927-1999) fez uma etnografia sobre a produção artesanal da farinha de mandioca (desde o plantio até a farinhada), compilando também seus aspectos folclóricos, intitulada “A Cultura da Mandioca”. Ela visitou quinze casas de farinha, demonstrando como o tradicional cultivo e produção da mandioca, e de seus derivados, permanecem vivos no Estado de Sergipe.

Além da cultura agrícola dos plantadores de mandioca e produtores de farinha, Núbia Marques registrou a lúdica folclórica das quadras entoadas pelos trabalhadores rurais. Elas expressam representações da mandioca no imaginário poético e rural sergipano. Ouçamos um exemplo: “Eu queria ser maindoca/ De maindoca macaxeira/ Prá andá de mão em mão/ E no colo da cevadeira”. A cevadeira do verso é a mulher que manipula o aparelho de ralar mandioca, colocando a raiz raspada no seu colo e depois empurrando-a para o rodete – pequena roda dentada de ralar mandioca -, peça fundamental da cevadeira, como também se chama o aparelho que rala a raiz.

Como vimos, a mandioca e seus subprodutos, além dos bens materiais e imateriais associados, estão presentes na vida dos sergipanos, formando parte de seu patrimônio cultural. Isto explica porque eles adquiriram poder de atratividade turística e entraram na pauta das autoridades públicas. Neste sentido, espera-se que, com a execução da “Rota da Farinha”, sergipanos e turistas valorizem, preservem e divulguem esse antigo bem gastronômico e botânico que é a Manihot esculenta.

REFERÊNCIAS:

  • ALVES, Francisco José (Org.). Fontes para a História de Sergipe: séculos XVI-XVIII. São Cristóvão/SE: EDUFS, 2012.
  • FONSECA, Luiz da. Lettres du Jappon, Peru et Brasil envoyées au R. P. General de la Société de Jesus. Paris: Thomas Brumen, 1578, pp. 35-110. In FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Informações sobre o Brasil jesuíta: uma missiva do padre Luiz da Fonseca de 1576. RIHGB, Rio de Janeiro, 251-288, jan./mar. 2010.
  • MARQUES, Núbia. O luso, o lúdico e o perene, e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
  • NUNES, Thetis. Sergipe Provincial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
  • SOUZA, Marcos Antônio de. Memória sobre a Capitania de Sergipe. Aracaju: Secult, 2005.
Fonte: MAIA, Tom. Casa de farinha em povoado Duro-Itaporanga d’Ajuda. Sergipe del Rei. São Paulo: Editora Nacional; RJ: Embratur, 1979.
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