Sergipanidade em (re) construção

Luiz Eduardo Oliveira
Doutorando em Saúde e Ambiente

O sergipano merece mais do que números de mortos, seja pela violência ou pela COVID-19, pois enquanto somos amedrontados, trancafiados e submetidos ao pânico, o processo eleitoral se aproxima, os gastos são realizados descontroladamente e o império da insegurança nos rodeia. Aqui em Sergipe e mais precisamente em Aracaju passamos grande parte do tempo discutindo sobre política e personalidades brasileiras e internacionais e esquecemos dos valores (cidadãos) da terra, daqueles que aqui viveram, vivem, fizeram e fazem deste canto do planeta um lugar fascinante e com chances de promover o instinto e a vontade de (Ser)gipano. Difícil, mas precisamos manter o equilíbrio. O vírus não pode roubar, além de vidas, a razão dos sobreviventes. Temos pouco a falar sobre assuntos locais, dirão alguns. Será mesmo? Façamos um esforço. Infelizmente nossos políticos e nossa mente coletiva insistem em manter em anonimato fatos e personalidades locais. Nosso ambiente escolar também pouco contribui para modificar o cenário de submissão intelectual.

Ao analisarmos os movimentos de luta pela emancipação cultural, que o Ramón Grosfoguel chama de descolonialidade, poderemos detectar facilmente o quanto caminhamos para um processo de enfrentamento pouco produtivo. Não se pretende com este breve manuscrito acirrar os ânimos entre os sexos ou entre cores de peles, nem mesmo sobre regionalismos. Pretende resgatar a vontade de viver nesta terra, mesmo sem a presença de “respiradores chineses”.

Mas caso façamos uma pesquisa sobre a filosofia antiga, teremos em Aracaju e quiçá no Brasil, sempre a referência de filósofos homens e os nomes associados são, invariavelmente, Sócrates, Platão, Aristóteles e talvez possamos incluir alguns pré-socráticos, também do sexo masculino, como o Tales de Mileto, Anaximandro ou Anaxímenes. Se seguirmos a trajetória oficial e oficiosa jamais iremos ler sobre Hipácia de Alexandria, Aspásia de Mileto ou Safo de Lesbos, importantes no surgimento formal da arte de filosofar. Fazendo um salto quântico, para utilizar a linguagem popular, poderemos chegar ao século XXI e mais uma vez não ouviremos e nem encontraremos, salvo exceções, escritos sobre homens de pele escura ou mulheres pensantes.

O espaço destinado às personalidades sergipanas, na orla de Aracaju, é uma prova disso, pois remete-nos à reflexão direcionada e só encontraremos homens com feições “esbranquiçadas”, porém o mais interessante é que o referido espaço foi elaborado na gestão do então governador João Alves Filho, sob supervisão de uma mulher portadora de uma intelectualidade incontestável. Já a criação estética foi do escultor Otto Dumovich. Pois bem, ali poderão ser vistos: Jackson Figueiredo Martins, Manuel José Bonfim, Sílvio Romero, Gilberto Amado, Graccho Cardoso, João Batista Ribeiro, Gumercindo Bessa, Tobias Barreto, Horácio Hora, José Calazans, Fernando Pessoa. Algumas dessas personalidades são tão desconhecidas quanto o escultor que as fabricou. Ignorância, dirão alguns. Talvez, mas os sergipanos precisam ser apresentados aos referidos grandes vultos.

E como romper com o patriarcado, com o colonialismo e ditadura do homem branco? Como resgatar a sergipanidade? Poderíamos começar apresentando sergipanos ilustres aos sergipanos, durante as aulas.

Outra alternativa seria realizar a construção de outro memorial, de preferência esculpido por artistas locais, no qual poderiam ser incluídas Maria Thetis Nunes, Beatriz Góis Dantas, Terezinha Alves Oliva, Ofenísia Soares Freire, Eufrozina Amélia “Zizinha” Guimarães, Maria Rita Soares de Andrade, Alina Leite Paim e a própria coordenadora do espaço cultural, localizado na abandonada orla, senhora Aglaé Fontes de Alencar.

Levantar “lutas”, brigar por igualdade entre os sexos (?), sustentar medidas afirmativas, entre tantas outras bandeiras, como reconhecimento de comunidades quilombolas e proteção de indígenas sergipanos (Xocós), embora sejam temáticas importantes, poucos são os efeitos positivos e descolonial.

Qual o reconhecimento feito pelo Estado de Sergipe a Bispo do Rosário? O que sabemos deste artista que revolucionou a arte moderna brasileira? Nem mesmo os que estudam o sistema prisional brasileiro ou sergipano ou os antigos manicômios judiciários sabem de sua trajetória. Só se tornou conhecido e famoso em 1980, após uma matéria de Samuel Wainer Filho para uma emissora de televisão bastante conhecida, com o objetivo de revelar a situação da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.  Sua produção está reunida no Museu Bispo do Rosário. Mesmo representando o Brasil, na Bienal de Veneza em 1995, com uma vasta seleção de peças, e obtendo reconhecimento internacional, este sergipano ainda é um desconhecido nas terras de Ará, para utilizar uma expressão do Paulo Lobo.

Nós temos artistas, talentosos e desbravadores e como a sergipanidade é construída a diário, fica o agradecimento a Maria Beatriz Nascimento (mulher negra, forte, pesquisadora, poeta, historiadora), Irineu Fontes, Dorinha Teixeira (Academia Sergipana de Balé), escritora Ilma Fontes, Lindolfo Amaral (Grupo Imbuaça), Joubert Moraes, Chico Queiroga e Antônio Rogério, Chico Dantas, Aglacy Meire, Amorosa com seu Coco da Capsulana, além de tantos outros que trouxeram e trazem a sergipanidade nas veias e portanto garantem a oxigenação de nossa cultura. Ainda faz falta o restaurante Dona flor, do elegante, culto e prendado Augustinho Maynard, no primeiro andar do mercado Antônio Franco.

Em tempos sombrios, na iminência de mais escândalos, lutas de egos e de desvios de verbas públicas, um pouco de lucidez e de agradecimento aos sergipanos arretados pode nos garantir a sobrevivência.