Sergipe Colonial: um luminoso quadro sinóptico

Amâncio Cardoso – Professor de História do Instituto Federal de Sergipe (Campus Aracaju).

            O período colonial sergipano carecia de uma obra que complementasse o livro incontornável de Felisbelo Freire, de 1891, História de Sergipe. Esse empreendimento foi tentado e executado pela historiadora luso-brasileira Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, ao publicar “Sergipe Colonial: uma capitania esquecida” (São Paulo: Singular, 2019. 232 p.). Este livro é uma das publicações mais recentes da professora.

            Beatriz Nizza da Silva nasceu em Lisboa. Na universidade da capital portuguesa, graduou-se em 1961 nos cursos de História e Filosofia. Em 1963, radicou-se no Brasil lecionando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde fez doutorado em 1967, no Departamento de História. Já em 1973, tornou-se livre-docente também pela USP. A profª Nizza da Silva se aposentou em 1990, ainda pela USP, como titular de Teoria e Metodologia da História. Ela é autora de vários livros sobre História do Brasil Colônia, dentre os quais se destacam: O Império Luso-Brasileiro, 1750-1822 (1986); Bahia: a corte da América (2007); Família e Herança no Brasil Colonial (2017).

            A historiadora da USP se inscreve entre os estudiosos da nova história social e da cultura, renovando a narrativa política e trazendo à luz novos objetos e temas de pesquisa, tais como o estudo do papel das elites na colônia; a visita da Inquisição Católica; a formação da família colonial; e as relações étnicas e de gênero no período. Assim, ela se insere na mesma seara historiográfica de Luiz Mott, Anita Novinsky, Maria Luíza Tucci Carneiro, Beatriz Perrone-Moisés, dentre outros.

            Nesta perspectiva, sua pesquisa sobre Sergipe analisa a vida sócio/econômica, geopolítica e cultural da capitania entre 1590 (conquista do território aos índios pelos lusos-baianos) até 1822 (confirmação da autonomia política de Sergipe por D. Pedro I).

Quanto à estrutura, o livro está assim dividido: uma introdução; 26 capítulos temáticos; e conclusão. Note-se, porém, que o texto de cada capítulo está ordenado cronologicamente.

            Na introdução, a professora da USP revisa a literatura sobre o tema e apresenta alguns problemas ao se pesquisar um território subalterno como Sergipe, o que dificulta não só a escolha da documentação, bem como a apreensão das especificidades da região. Talvez por essa razão, o objetivo central do livro seja o de tirar Sergipe do “esquecimento” a que foi relegado pela historiografia do Brasil colonial, por ser considerada uma capitania “menos atraente” no que diz respeito à pesquisa; alega a autora.

            Quanto aos capítulos, eles enfeixam temas da vida colonial sergipense, a exemplo dos seguintes tópicos: conquista e povoamento do território; organização administrativa, judiciária e militar; economia e política; formação de freguesias e vilas; elites e famílias; relação entre governo, índios e colonos; atritos entre o clero regular e os fregueses, e sobre a tardia educação régia na capitania.   

            Após analisar e interpretar cada aspecto, lastreado por fontes de época, a profª Nizza da Silva oferece algumas conclusões pertinentes que caracterizariam Sergipe no período estudado. Assim, por exemplo, ela conclui que a capitania era um território de constantes conflitos entre autoridades locais (capitão-mor, ouvidor e câmaras), dificultando os serviços prestados à população. As elites se dividiam em dois tipos: as de posse da terra e outra com capacidade financeira para comprar cargos administrativos.

Outra especificidade de Sergipe Del Rey percebida pela autora foi que as freguesias eram mais numerosas do que as vilas, demonstrando um espaço pouco urbanizado e com população dispersa. Além disso, não havia a assistência de médicos ou cirurgiões, deixando os moradores desprotegidos no tocante à saúde. Quanto ao ensino, o serviço também era precário e as aulas régias foram instituídas tardiamente, em relação às demais capitanias. Para completar, não havia órgão de imprensa ou atividade jornalística em Sergipe colonial, o que dificultava a propagação de ideias revolucionárias. Já a economia, se baseava na criação de gado e na produção açucareira para abastecer a Bahia; além de pagar tributos e donativos à capitania vizinha; dados já confirmados por outros estudos de história econômica local.

            Este panorama é a sinopse de uma capitania dependente nos âmbitos político, econômico, administrativo e cultural. Corroborando o que Felisbelo Freire especulara em sua obra seminal. No entanto, a professora Nizza da Silva nos apresenta novos meandros da sociedade colonial sergipense e utiliza fontes que ampliam ou complementam a pesquisa de nosso primeiro historiador. A autora monta, assim, um quadro sinóptico calcado em velhos e novos testemunhos. Ele confirma e aprofunda a situação de subalternidade da capitania de Sergipe.

            Quanto aos acervos e fontes utilizados pela autora, ela compulsou manuscritos nos diversos fundos de importantes instituições de pesquisa: Arquivo Ultramarino e Arquivo Nacional Torre do Tombo (os dois em Lisboa); Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sem falar das fontes impressas de acervos do Brasil e Portugal, tais como periódicos; coleções, catálogos, livros, dicionários, entre outros. Enfim, a pesquisadora luso-brasileira demonstra profundo conhecimento da documentação colonial, decifrando termos, usos e costumes utilizados à época, traduzindo-os num texto fluente.

            Aliás, um outro ponto que merece acento no livro é sua linguagem clara e objetiva. A autora domina a pena de Clio. Seu texto é coeso e as partes mantêm unidades de sentido. Esta coerência textual esclarece imbricadas relações sociais e políticas em Sergipe colonial. Isso torna a leitura transparente e saborosa, mesmo tratando de assuntos árduos, como as intrigas entre capitães-mores e ouvidores, e entre estes e as Câmaras; ou ainda imbróglios entre índios, colonos e religiosos, ou entre estes e o Governo da Bahia.

            Em “Sergipe Colonial: uma capitania esquecida”, apesar das cenas de corrupção, fraudes e celeumas, nos deparamos também com fatos e personagens no mínimo insólitos. Um exemplo, é o padre Antônio Álvares de Miranda Varejão, pároco da freguesia de N. Sra. do Socorro da Cotinguiba. Ele foi denunciado por seus fregueses, num volumoso processo, devido a seu procedimento despótico e imprudente, mau exemplo de vida, gênio ambicioso e falta de fidelidade no confessionário. Ademais, houve queixas de que o padre Varejão era libidinoso, concupiscente, violento e vingativo, chegando às vias de fato. O pároco andava sempre armado e acompanhado por “um negro” que portava bacamarte. Por fim, o padre Varejão teria concubina e tentara violentar uma viúva (p. 134-135). Mesmo assim, reclamando contra seus párocos, “todas as vilas queriam ter o seu”, acentua a autora, demonstrando o poder de inserção da Igreja Católica numa capitania “esquecida”, num mundo em que circulavam ideias iluministas de laicização da sociedade.    

            “Sergipe Colonial” é uma obra que pode ser lida por qualquer pessoa que se interesse pela vida pretérita de nosso território. Mas o livro é um subsídio útil aos pesquisadores, professores e estudantes de História; como também aos profissionais e estudantes de Ciências Humanas. Pois a obra em tela da profª Beatriz Nizza da Silva é uma síntese, mas que traz à luz documentos inéditos e indica novos objetos de pesquisa, tais como a investigação das correições na Comarca de Sergipe e os tipos de denúncias encaminhadas à Ouvidoria, entre 1701 e 1801 (p. 173).

Por fim, o quadro sinóptico sobre Sergipe Colonial desenhado pela profª Maria Beatriz Nizza da Silva, oferece indicações e possibilidades de pesquisa sobre o período, conclamando os “jovens historiadores” a complementarem, com a documentação dos arquivos sergipanos, o que esta síntese não pode trazer à luz.

[1] Professor de História do Instituto Federal de Sergipe (Campus Aracaju).

Rolar para cima