Amâncio Cardoso – Professor do IFS –
Todos sabemos da proximidade familiar e afetiva de Jorge Amado (1912-2001), famoso escritor baiano, com Sergipe. Por um lado, o pai de Jorge, João Amado de Faria (1880-1962), era sergipano; e por outro lado, o romancista casou-se em 1933 com Matilde Garcia Rosa (1916-1986), também sergipana, irmã de Antônio Garcia Rosa (1877-1960), o poeta da colina do Santo Antônio, Aracaju. Com Matilde, Jorge Amado teve uma filha, Eulália Dalila Amado (1935-1949) que morreu precocemente. Em 1944, Jorge separou-se de Matilde, após onze anos casados. 2
Além disso, a ligação umbilical entre o escritor e Sergipe ficou registrada em suas amizades aqui conquistadas, bem como nos seus romances, a exemplo de “Cacau”; “Tereza Batista Cansada de Guerra” e “Tieta do Agreste”. Vejamos, então, como Sergipe comparece nessas três obras de Jorge Amado.
“Cacau”, de 1933, trata das aventuras de José Cordeiro, um sergipano de São Cristóvão que migrou para trabalhar numa fazenda no sul da Bahia, onde dividia um casebre com companheiros de labuta e sofrimento.
No capítulo “Infância”, de Cacau, a história se inicia na cidade de São Cristóvão, antiga capital de Sergipe, onde nascera e crescera José Cordeiro. Além de apresentar fábricas, vilas e operários; sobrados e casebres; ladeiras e praças; igrejas e conventos; o personagem descreve, de forma panorâmica, a vetusta cidade e avalia: “A cidade subia pelas ladeiras e parava lá em cima, bem junto ao imenso convento. Olhando do alto, via-se a fábrica, (…). Talvez não fosse bela a velha São Cristóvão, ex-capital do Estado, mas era pitoresca, pejada de casas coloniais, um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos a abafarem a alegria das quinhentas operárias que fiavam na fábrica de tecidos”.
De São Cristóvão, José Cordeiro vai a Aracaju “tomar o vapor” e partir para Ilhéus-BA; uma partida sem volta. 3 Portanto, São Cristóvão, no romance, é o cenário saudoso, colonial e pitoresco da infância, da família e dos amigos do migrante sergipano. Já na obra “Tereza Batista Cansada de Guerra”, de 1972, Jorge Amado conta a história de luta de uma mulher num ambiente quase sempre áspero e hostil. Mundo de sofrimento, miséria e violência que Tereza começa a conhecer muito cedo. Em suas desventuras, Tereza Batista aporta em Sergipe.
Na capital sergipana, Tereza estreia como dançarina de um cabaré no Vaticano. O Vaticano é um grande sobrado, com vários compartimentos, ainda existente na antiga área próxima aos mercados municipais do centro histórico de Aracaju; onde também se localizava o cais do porto da capital.
Dentre os frequentadores do Vaticano, para assistir à estreia da baiana, estava o pintor aracajuano Jenner Augusto (1924-2003). Jorge Amado tinha como costume introduzir amigos reais em suas narrativas ficcionais. Jenner foi um dos mais expressivos nomes das artes plásticas sergipanas, mas viveu grande parte da vida em Salvador, cidade adotada por Jorge Amado.
Além do pintor e do sobrado, no romance também aparecem outros lugares significativos de Aracaju de antanho: a praça Fausto Cardoso; o Hotel Marozzi; a Ponte do Imperador; a praia de Atalaia Velha, entre outros
É na praça Fausto Cardoso, onde se localizava o palácio do governo e onde foram expostos os cartazes do show da baiana Tereza, “a maravilha do samba”. Até hoje, aquela praça é a principal da cidade, na qual se localizam os prédios dos três poderes do Estado.
À época da narrativa, primeira metade do século XX, o principal hotel de Aracaju era o Marozzi, onde o dono do cabaré em que Tereza dançava, Flori Pachola, se hospedara como mensalista e ficara retido até pagar as diárias devidas. O hotel Marozzi, fundado em 1934 e fechado em 1965, fora dirigido pelo italiano Augusto Marozzi (1888-1969), e se situava na rua João Pessoa, centro da capital.
Outro lugar de Aracaju, que tem apelo turístico, e também comparece nas páginas de “Tereza Batista”, é a Ponte do Imperador. Localizada às margens do rio Sergipe, defronte à praça Fausto Cardoso. Na verdade, “a ponte” é um atracadouro de concreto, símbolo arquitetônico para lembrar a visita do Imperador Pedro II e comitiva em janeiro de 1860.
Na história de Tereza Batista, a Ponte do Imperador serviu de recanto para conversa com seu namorado. Do mesmo modo, no cotidiano de Aracaju, ali já fora um lugar aprazível para encontros entre amigos e apaixonados, a contemplarem a paisagem e a brisa que sopra do lado da Barra dos Coqueiros, município fronteiriço à capital.
Mas o lugar mais apreciado por Tereza e Januário Gereba, saveirista baiano por quem ela se apaixonara, era a praia de Atalaia, então distante e erma, onde os dois “entravam mar adentro, Tereza entregando-se no meio das águas, toda sal e espuma”, escreveu o romancista. 4
Na época da narrativa, a Atalaia Velha era um distante e bucólico povoado de casas de palha, com acesso por estrada de terra, margeado por dunas, praia de areia batida, próprio para encontros amorosos como o de Tereza e Januário. Mas atualmente, a praia de Atalaia é o mais importante recanto turísticos da cidade, possuindo infraestrutura satisfatória para receber visitantes.
Saindo de Aracaju, Tereza vai a Buquim, município de Sergipe, agora como amante de um jovem médico. Nesta cidade, encontra servidores do posto médico a desertarem diante do avanço de uma epidemia de varíola. Ela reúne então as prostitutas da vila e dá assistência aos doentes, vencendo a bexiga negra. Sua passagem por Buquim está contada no capítulo “ABC da peleja entre Tereza Batista e a Bexiga Negra”.
A então bucólica vila sergipana é assim descrita na obra: “Buquim é a calma perfeita, a paz absoluta, nada acontece por lá, a não ser a passagem diária dos trens, um para a Bahia, um para Aracaju e Propriá”. 5 De fato, a ferrovia chegou em Buquim no ano de 1913, abrigando uma das principais estações do primeiro trecho, entre Tomar do Geru e Aracaju. Assim como na ficção, a estação ferroviária de Buquim passou a ser ponto de frequência indispensável da sociedade local, na espera da passagem dos “trens de horário”, conforme fonte de época. 6
Além de Aracaju e Buquim, outra cidade sergipana que serve de cenário para “Tereza Batista” é Estância, no litoral sul de Sergipe. Nesta cidade, o autor baiano refugiou-se do governo ditatorial de Getúlio Vargas, e também se casou, teve uma filha, conviveu com amigos e parentes, entre 1935 e 1936. Portanto, Estância terá importância singular na vida literária do escritor de Itabuna-BA.
Em Estância, Tereza viverá seus melhores dias como amásia de um velho ricaço da região, doutor Emiliano Guedes, que a retirou de um prostíbulo. Sendo assim, vejamos como o personagem narrador de “Tereza Batista” descreve a geografia sentimental da cidade jardim de Sergipe: “A viagem é um passeio, a gente boa e o lugar lindo, lá se reúnem os rios Piauí e Piauitinga para formar o rio Real e dividir Sergipe da Bahia”. 7
Ainda sobre o rio Piauí, o romancista remete à sua velha Ponte construída no meado século XIX. Sob essa ponte, Tereza e seu amante “iam fretar-se” ou “banhar-se juntos na Cachoeira do Ouro, no Piauitinga”. Além da paisagem paradisíaca, o romancista faz referências a outros aspectos da vida estanciana, tais como o refresco de mangaba, as fábricas de tecido, a praça da Matriz, o porto das barcas, a povoação do Saco, os casarões antigos e o clima ameno. E sobre este último, assevera o narrador: “Nas cálidas noites de Estância de amena viração, brisa dos rios, no céu de estrelas sem contar a lua desmedida sobre as árvores, ficavam no jardim a bebericar, ela [Tereza] e o doutor”. 8
Estância comparece no romance como o lugar ideal para a intimidade dos amores clandestinos. Quanto à presença de Sergipe na terceira obra, aqui selecionada, de Jorge Amado, “Tieta do Agreste”, temos uma visão edênica de uma de nossas praias do Litoral Sul de Estância, município sergipano mais elogiado pelo autor baiano, devido sobretudo a suas raízes familiares e à rede de amigos que ali ele constituiu durante seu breve e “doce exílio”.
Tieta do Agreste, publicado em 1977, recria o cotidiano de um vilarejo do litoral norte da Bahia, próximo à foz do Rio Real, região de Mangue Seco, vizinho a Sergipe, num momento crucial de sua história, a sua paz, a vegetação, as dunas e as praias viram alvo de uma empresa poluidora, a Brastânio, Indústria Brasileira de Titânio S. A. É nesse cenário que se movem as personagens, dentre elas, Tieta – a pastora de cabras que fizera fortuna em São Paulo, gerenciando moças para políticos e empresários, e que agora retorna, buscando um paraíso que vê se perder.
Tal cenário abrange também a vizinha Praia do Saco, em Estância-SE. Vejamos a descrição do lugar feita pelo narrador na abertura do romance: “Do outro lado da barra, a beleza da praia larga e rasa do Saco, em mar de águas mansas, no Estado de Sergipe, a ampla aldeia de pescadores, com armazém, capela e escola, um vilarejo”. 9 Nos dias de hoje, a paradisíaca praia do Saco tem a vocação para o turismo, necessitando, é bem verdade, de uma melhor infraestrutura de bens e serviços para incrementar o setor.
Como vimos, Sergipe comparece na obra de Jorge Amado de forma significativa e positiva. Na maior parte das vezes, se apresenta como cenário idílico; ou ainda com vilas e cidades pacatas e de vida provinciana, mesmo na capital do Estado. Desse modo, o autor expressa um ar de nostalgia da terra de seus parentes paternos.
Neste sentido, Sergipe precisa se divulgar melhor como cenário ficcional das obras de Jorge/ Amado, romancista mundialmente conhecido e premiado, cujos livros foram adaptados para o cinema, teatro e televisão; além de ter sido tema de escolas de samba em várias partes do Brasil. Ademais, seus livros foram traduzidos para 49 idiomas, em mais de 60 países, existindo também exemplares em braile e em formato de audiolivro.
Portanto, num estado como Sergipe, onde o Turismo tenta intensificar seu potencial de atratividade, ter os romances do autor de Tereza Batista como “padrinho” para divulgação positiva, já seria um bom começo para uma guinada na política de promoção turística de nosso Estado.
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2 MENEZES, Cynara. Baú de ex-mulher revela o poeta Jorge Amado. Jornal Folha de São Paulo. SP, nº 26.430, de 13 de agosto de 2001, p. E1. (Folha Ilustrada).
3 AMADO, J. Cacau. 52. ed. RJ: Record, 2000. p. 07-15.
4 AMADO, J. Tereza Batista Cansada de Guerra. 24. ed. RJ: Record, 1987. p. 55.
5 AMADO, J. Tereza Batista Cansada de Guerra. 24. ed. RJ: Record, 1987. p. 195.
6 FERREIRA, Jurandyr (Coord.). Enciclopédia dos municípios brasileiros. RJ: IBGE, 1959. p. 258.
7 AMADO, J. Tereza Batista Cansada de Guerra. 24ª ed. RJ: Record, 1987. p. 227.
8 Idem ibidem, p. 253.
9 AMADO, J. Tieta do Agreste. RJ: Record, 1977. p. 11.