José Lima Santana
Padre, advogado e professor da UFS
Tou de boas. Engano a mim mesmo? Tou de boas. Coração meu descompassado. Cabeça minha dá voltas. Fugir eu tento. Covarde sou não. Tempos adversos enfrentei. Desde menino, sem roupa. Correndo nu pelas estradas, lambuzado na lama beira do poço, vias de secar. Mãe minha sofreu até a morte. Doença desconhecida. Finou até acabar-se. Agarrei-me rede sua, corpo morto. Chorei não. Olhos meus secaram. Nem uma lágrima. Coraçãozinho meu trespassado. Cinco anos eu tinha. Jogado no mundo fiquei. Desamparado. Sem eira nem beira. Desbeirado. Família minha mãe, tudo distante. Pai meu nunca que conheci. Morreu, eu ainda no bucho mãe minha. Morte matada. Senhor coronel terras tomou pai meu. Terras papel passado. Papel nada valia. Imperiosa vontade era coronel Adolfo Curiboca. Homem herege. Malvado. Assassino. Até mulher matou. Mulher dele. Gente graúda comia mão dele. Governador, deputado, mais gente dessa laia. Nunca que vi cara dele. Melhor assim. Mãe minha dele fugiu. Pra’qui se botou.
Cresci no mundo. Bati portas muitas. Poucas se abriram. Tia Mariquinhas, preta velha de sabedoria grandiosa foi minha valia. Dela teto e comida recebi. Ninguém ela tinha. Nasceu livre por lei, mas escravizada foi. Homens sem coração isso fizeram. Com muitos pretos. Sertões distantes, sertões embrutecidos. Jagunços. Armas. Mortandades. Pretos botados no jugo depois mesmo da alforria. Vida dolorosa. Vida cruel.
Rapaz eu me fiz. De sol a sol trabalhei. Tia Mariquinhas se foi pras terras de Aiocá. Terras povo dela, costa d’África. Funeral fiz. Sem parentes nem aderentes, herdei por vontade dela casa de sítio. Terra boa de lavoura. Sozinho no mundo mais uma vez. Entocado. Cidade vou quando de precisão. Gosto não. Vizinhança pouca. Pouco converso, pouco saio. Vida minha pequena, mas boa. De prosperar, ordem pobre venho prosperando. Poucos teres e haveres. Porém, vida sem aperreios. Criações miúdas de porcos e bodes. Boa lavoura.
Coronel Adolfo Curiboca ainda vivo. Ainda malvado. Assassino. Notícias correm. Cara dele nunca vi. Nem ver pretendo. Lembraria pai meu. Por mim não houvera de responder. Melhor assim. Tia Mariquinhas ensinou que fúria divina toma conta dos maus. Assim seja.
Filha Manoel Poço D’Anta deu de vista n’eu. De vista nela, dei. Olhos meus turvaram. Depois acenderam como luminosa candeia. Fogaréu peito meu. Tia Mariquinhas dizia: “Chegar hora ter mulher, escolher ancas largas, cenho fechado”. Ancas largas, mulher boa parideira. Cenho fechado, mulher de respeito. Lições tia Mariquinhas. Filha Manoel tudo isso tem. Boas ancas. Rosto sério. E belo. Terei ficado no enfeitiçamento?
Acerquei-me, domingo passado, casa Manoel Poço D’Anta. Meia légua adiante casa minha. Direto fui. Manoel, homem de “sim-sim, não-não”. Revelei intenção minha. Baque levei. Ana Rita moça comprometida. Mão dada já em casamento. Suei frio. Dei na fraqueza. Fiz feio diante Manoel. Bastou um olhar Ana Rita. Entonteci. Não poderei ter tamanha formosura lado meu.
Tou de boas. Penso isso pra me enganar. Pra não sofrer. Homem tem que sofrer por mulher? Não devia. Mulher tem no mundo como aves de arribação. Se não daqui, dali. Se não uma, outra. Ninguém deve sofrer por coração alheio, homem ou mulher. Tou de boas. Sofrer quero não. Demais sofri desde morte mãe minha. Mãe minha sofreu morte pai meu. Sofrimento coisa ruim. Tou de boas. Sol se põe e sol se levanta. Cair não vou. Saber futuro casamento Ana Rita foi como atravessar pinguela estreita, arame rasgando camisa e carne. Tou de boas. Ancas largas e cenho fechado. Outra há de ter. Pressa tenho não. Se contas tia Mariquinhas certas forem, não passo dos vinte anos. Novo sou. Pressa tenho não.
Cidade tenho que ir. Coisas pra comprar. Vendi safra, vendi gordos bacorinhos, vendi boas marrãs. Dinheirinho tenho. Gosto não cidade. Precisão. Vou num pé, noutro volto. Filha Manoel, amigo meu, casar vai. Diacho. Andei por derradeiro. Tarde cheguei. Tem nada não. Rastros hei de fazer noutras ranchos. Em qualquer tempo. Tempo tenho. Novo sou. Tou de boas. Arrepiado por dentro. Vou vivendo como dantes. Ligo não. Ana Rita tem pretendente. Importa não. Tarde cheguei. Mas, tropeço pode haver. Acontece.
Solzinho frouxo, tempo das flores. Por todo canto, flores cores muitas. Ramagens nos caminhos. Sábado. Boto roupa menos ruim. Parede descascada. Miro imagem Santa Rita de Cássia, santinha devoção mãe minha. Imagem ela deixou. Padroeira cidade minha nascença. Terra do coronel. Lá nunca fui. Encrenca quero não. Vontade fazer desgraça tive. Não sei se tenho ainda. Coração às vezes pede. Fúria divina, dizia tia Mariquinhas. Deus tome conta coronel assassino pai meu. Falta coragem não. Vida segue. Deixe estar. Deixe estar… Um dia, bofes meus podem esquentar.
Tempo escurece. Armazém Dionísio Sintra bem sortido. Praça da feira. De um-tudo tem. Desmonto. Moça bonita no balcão. Novata. Nunca que antes eu vi. Barulho lá fora. Dia de feira. Rebuliço vindo vem. Passo vista d’olhos. Procissão? Não. Gente da política. Perto está eleição. Homem gordo grita: “Viva coronel Adolfo!”. Muitos gritam: “Viva! Viva!”. Coronel Adolfo? Será ele, assassino pai meu? Nunca vi. Homem idoso, brancos cabelos. Centro atenções. Coronel mandachuva cidades muitas. Cortejo finca pé frente armazém. Falação. Homem idoso, brancos cabelos, coronel Adolfo, sim. Fala. Dificuldade tem. Fala baixo. Céu mais escuro. Trovão estronda. Cidade estremece. Raio risca céu. Coronel Adolfo pega fogo. Gente corre pra lá, pra cá. Fúria divina. Coronel morto. Melhor assim. Tia Mariquinhas de fortes rezas. Sabedoria grandiosa. Grande alvoroço cidade inteira. Gente muita aliviada, morte coronel. Espanto. Fúria divina.
Enfim, tudo cessado. Fúria divina lavou alma minha. Precisar matar coronel, precisei não. Boas compras fiz armazém Dionísio. Moça novata deu de vista n’eu. Dei de vista nela. Estremeci. Olhar Maria Rita mais fogo tem. Tou de boas. Tempo tenho.