Travessias

José Lima Santana
Padre, advogado e professor da UFS

Rio grande, rio largo, rio cheio. Dificultosa travessia. Naçãozinha de peixes de afiados dentes, como lâmina minha, dos dois lados vazada. Piranhas. Jogar boi n’água para se desviar da sanha assassina. Bois manhosos, sinhô meu. Pressentem a quietude dos peixes. Refugam água. Quietude passageira. Tudo na tocaia, rebuliço espreitando. “João, ô João Valdivino, cê bote esse boi velho de canga no aprumado do val deste rio”. Boi de piranha tem de ser velho, de serventia pouca. Salva a boiada. Dez anos beirando e vadeando essa ribeirama, nas enchentes ou nas vazantes. Desde menino. Rios de monta. Grandes, largos, assustadores. Ou riozinhos de pouco caprichamento, travessia em miúdas caneladas. Por aqui aprendi a viver. Largo não. Onde ter afortunada liberdade? Na cidade? Na Vila dos Martins, antro de velhacos e ladrões? Gostei não. Patrão meu levou-me, um dia. Dia só. Desmiolei. Lugar de atoleimada perdição. Filho de patrão meu deu-me endereçamento do mulherio. Bocas pintadas, carnes em desavergonhado mostramento. Dinheirão paguei. Bebi dois tragos. Conta quase maior que salário. Azucrinei. Filho patrão meu, “seu” Tulho dó ele teve. Molhou mão minha. Dinheiro de retorno em festejado acolhimento. Mãe precisada de coisas. Melhor presentear mãe minha que suspirar a quase morrer em louco desvario. Homem sou em tudo provado. Mas, tenho cá de meu certo sentimento. Comedido sou. Nisso mal não há de haver. E tem a Maria Júlia. Ela merece não, namorado cachorro.

Lugar meu é aqui. Varando rios. Vento solto, tangendo galhadas em voz de penadas almas. Sol rasgando véus da madrugada, acordando onças e bois, aves e bichos de outras tantas nações. Dias acalorados antes dos aguaceiros. Pastos secam. Rios engolidos, peixes e jacarés morrendo. Festa de urubus. Nosso Senhor apieda-se de nós. Demora por vezes. Pai meu dizia que Deus zangava dos homens impenitentes. Impenitentes. Não sei o que vem a ser. Perguntar não pergunto. Sou assim. Fico remoendo palavras. Impenitentes… Sei não. Coisa boa não há de ser. Castigo de seca, Deus manda. Castigo de água além da fartura, também manda. Dos pecados tudo depende. Na cidade, pecados de monta eu vi. Caí. Boca pintada entortou caminhar meu. Dia só. Guentei não. Patrão meu viu desassossego em minha cara. Por “seu” Tulho, ele mandou botar-me de volta. Alívio. Maria Júlia nunca que possa saber do meu desatino na casa da perdição. Ruim de todo não foi. Sem-vergonhice demasiada. Urrei feito boi cavando formigueiro. Vinte anos sem conhecer tremor do corpo meu em cima de corpo outro. Destemperado desfalecimento. Gostei e desgostei. Maria Júlia não me perdoava, se soubesse. Saberá não. Dinheiro gasto “seu” Tulho compensou. Sorte minha. “Seu” Tulho tem pouco mais da minha idade. Gosta dessa vida descarada com mulheres de bocas pintadas. Patrão meu parece ter orgulho de “seu” Tulho ser assim como galo em sortido terreiro.

Eh, rio grande, rio cheio! Travessia terceira deste ano. Duas em baixa. Essa, não. Água fazendo barulho, assustando. Piranhas na espreita. Boi velho na água. Sem força para vencer o rio. Desanda. Muge alto. Muge ainda mais alto e triste. Lamento dolorido. Água avermelhada fica. Boiada passando adiante. Piranhas tributo cobram. Essa é a vida. Dos bois e nossa. Travessando. “Ô Rodolfo, tu hoje tá com a pá desvirada, meu filho? Tu tá cego? Aprume aquela rês, senão piranhas terão gordo repasto”. Capataz nosso, duro como pedra. Amigueiro, porém. É padrinho meu. Grandioso respeito tenho. Tomo bênção. De paparicos não ando. Quero não ver olhos atravessados companheiros meus. Iguais temos que ser. Sem preferências. Pai meu ensinou-me viver assim. Rezo por ele. Pouco rezar eu sei. Rezo de coração, silencioso. Enchente engoliu pai meu. Salvou filho de Rosa de Artur, mas desceu em águas turvas e desapareceu. Nunca que achamos. Travessias. Tudo são travessias.

Vinte anos. Mãe minha diz que hora é d’eu ter mulher e filhos. Casa já tenho. Maria Júlia tenho. Ela me tem. Um peão. Pouco posso oferecer. Ela tem mais. Tem estudo. Lê bem e conta bem. Teve oito anos de escola. Tive só dois. Nunca completos. Soletro quase ruim. Contar eu sei. De cabeça. Pouca conversa nossa, d’eu e Maria Júlia. Namoro mais de olhos. E de silêncios. Risos encabulados. Sinto coração dela bater igual ao meu. Mãe minha diz que há bem-querer nela e n’eu. Dona Celina, mãe dela, não desdiz. “Seu” Antero faz alarde: “Tu é como um filho”. Disso eu faço gosto. Maria Júlia tem vestido de casamento aprontado por ela mesma. Costura bem. “Seu” Antero comprou máquina novinha em folha. Moderna, diz ele. Filha única merece. Quero muitos filhos. Cinco ou seis. Rico não sou. Morrer de fome ninguém vai. Trabalho duro. Tenho tino. Seis rezes tenho, nelores. Roçado tenho. Patrão meu, d’eu não desgosta. Um dia, serei capataz. Padrinho meu para isso me prepara, eu sei. Ele nada diz, mas sinto. Logo, ele vai armar a rede no alpendre. Dos setenta, passou já. Pode descansar sem que nada lhe falte. Bom pé de meia tem.

Travessamos. Nenhuma rês perdida. Piranhas satisfeitas. Boi velho em seus dentes. Maria Júlia espera nossa passagem. Minha passagem. Casa dela ali perto. Cinco semanas sem me ver. Boiada tocada sem pressa. Paro o cavalo. Peço um copo d’água. “Boas tardes, Dona Celina”, digo levantando o chapéu. “Maria Júlia sonhou contigo, noite dessa”. Ela teme que eu desgoste da filha? Precipitar precisa não. “Eu também sonhei”, digo, todo mentiroso. Não faz mal. Assossega o coração da mãe. Bebo a água fria. Reclino-me no arção da sela para tocar cabelos amada minha. Ela toca-me a mão. Segura. Aperta. Olhos minando água. Olhos negros como a noite mais escura. Lindos. Miúdos como dos índios bugres. Parecem em minha alma penetrar. Sorrimos acanhados. Não sei se é isso que de amor se chama. Deve ser. Arara-azul voa e revoa sobre nós. Bom sinal. Sinto redemoinho no peito. Deve ser amor. Bem-querer. Eu sou só um peão. É preciso mais para ser feliz?

Travessias. Tudo no mundo são travessias…

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