Udenista numa família perrepista/pessedista

José Lima Santana – Padre e advogado

A minha avó Lourdes (Maria de Lourdes Soares Santana), falecida em 29 de maio de 1972, e meu avô Dioclécio, falecido exatamente um mês depois, talvez por não suportar a ausência de vovó, eram os pais adotivos do meu pai. Ela era irmã da minha avó Zulmira, mãe biológica de papai. Meu avô Zezé (José Joaquim Félix de Lima) morreu em 1934, quando meu pai tinha apenas dez meses de idade, nascido a 25/10/1933. Dona Zulmira, que eu a chamava de “a historiadora da família”, pois era ela quem me contava o passado da família e da própria cidade, dos seus acontecimentos políticos, uma vez viúva achou-se sem rendas, com seis filhos para criar e apenas uma casa para se abrigar. Nada mais. Ela passaria muitos anos viajando a pé a Maruim, para, tomando um saveiro, ir a Aracaju, a fim de vender, periodicamente, junto com outras mulheres, as rendas da almofada de bilros, que ela produzia. Foi assim que ela alimentou os filhos. Em face de suas dificuldades, desde a morte de “seu” Zezé, minha avó Lourdes passou a criar o meu pai. Filho único. Depois, minha avó e meu avô passaram a criar uma menina, dindinha Carminha, minha madrinha de apresentar, como se usava à época, na Igreja Católica.

A minha família votava na coligação PR/PSD. Em Dores, dos dois, o partido mais forte era o Partido Republicano – PR, aliado ao Partido Social Democrata – PSD. Em alguns municípios era assim. Noutros, na maioria, dava-se o inverso, o PSD era o partido forte, dentre os dois, que sempre estavam coligados contra a União Democrática Nacional – UDN. O PR era liderado por “seu” Tota (Antônio dos Reis Lima) e o PSD por “seu” Juca do Caípe (José Cardoso de Oliveira). Ambos são nomes de Praças, exatamente naquelas onde eles moravam. As denominações foram feitas ao tempo do mandato do prefeito Paulo Garcia Vieira (1973-1977), quando eu ingressei no serviço público municipal, contratado como professor primário leigo, em julho de 1973, aos 18 anos de idade.

Dores sempre foi palco de agitações políticas. Eu ainda haverei de escrever sobre tais agitações, desde o fim dos anos oitocentos. Mas, como em Sergipe e, ademais, no Brasil, as disputas políticas, a partir da redemocratização, após a queda de Vargas, em 1945, ficavam por conta dos udenistas contra os pessedistas/perrepistas, do governo de José Rolemberg Leite (29/03/1947 a 31/01/1951) ao de Luiz Garcia (31/01/1959 a 06/07/1962), no voto ou nas ruas as querelas não davam tréguas, nos dois lados.

Tio Vangelo (Evangelino Soares Santana), irmão das minhas avós, era o patriarca da família. Pequeno comerciante, em sua bodega, no João Ventura, os “totistas” se reuniam para ouvir, no rádio, os programas da Rádio dos Leite, como era chamada a Rádio Jornal. “Seu” Vangelo congregava toda a família em torno dele. Era um negro alto forte, como um tronco de baraúna, de olhos azuis-escuros, puxados à sua mãe, Maria Rosa, que era morena-clara, casada com “seu” Dá, um negro, meio cafuzo. Eu, sobrinho-neto, era muito ligado a esse meu tio-avô. Quando ele passava lá em casa, rumo ao seu sítio, me carregava. Quando ele ia à casa da minha avó Lourdes, e eu lá estava, ele me pedia para ir à própria bodega dele, comprar uma meiota (a metade de meia garrafa) de pinga, pois, naquele tempo, antes do almoço, ele bebia um aperitivo escondido da família, em face de problemas de saúde. Era cardíaco.

Embora a família votasse no partido de “seu” Tota, havia uma relação muito amistosa com o chefe da UDN, Maneca do Poção (Manoel Paes de Santana). E as famílias se davam, como, até hoje, nos damos muito bem, graças a Deus. Mas, na família havia uma udenista. Era a minha avó Lourdes. Uma dissidente. Ah, calada, ela votava na UDN de “seu” Maneca! Aliás, quando ele morreu, lembro-me muito bem, eu fui com ela ao enterro. Não esqueço jamais que o povo se admirava de ver, pelo vidrinho do caixão, o rosto do chefe político morto. “Caixão de rico”, diziam, tão diferente dos caixões de pano roxo fabricados por João de Pucina. Já escrevi sobre isso.

Não sei se os irmãos de minha avó sabiam da “traição” dela. Se sabiam – e eu acho que sim –, não podiam dizer nada. Ela era rezadeira e doceira, economicamente independente da família e até do meu avô, que vendia cereais na feira e tinha um gadinho no pasto. Vovó tinha casa no aluguel e uns dinheirinhos a juros. Era girenta. Todavia, se a UDN se botasse contra alguém da família, minha avó Lourdes cerrava fileira com os seus. Meu pai votava com a família, somente deixando o lado de “seu” Tota, na eleição em que Joel Nascimento se elegeu prefeito pela primeira vez, em 1962, derrotando o próprio Tota (PR), Acrísio Almeida Azevedo (UDN), e Idalício Soares dos Santos (PTB), nosso parente, no qual ninguém da família votou. Joel era vereador pela UDN, que lhe negou a legenda para a candidatura a prefeito. Então, ele buscou um partido nanico. Acabaria tendo o domínio político ininterrupto do município de 1962 a 1982, quando, enfim, um candidato seu perdeu a eleição daquele ano, para um filho de “seu” Tota, Jaime Figueiredo Lima.

Na eleição governamental de 1958, Luiz Garcia da UDN (com 58.837 votos) derrotou José Rolemberg Leite do PSD (com 52.530 votos), dando-lhe o troco em face da eleição de 1947, quando Leite (com 40.847) derrotou Garcia (com 25.793 votos). Em Dores, o candidato da UDN a prefeito, Francisco Paes de Santana, irmão de “seu” Maneca, também ganhou. Cabelo e barba. Mas Juscelino Kubitscheck, do PSD, ganhara para presidente, três anos antes, ou seja, em 3 de outubro de 1955. À época, o estado era governado por Leandro Maciel, da UDN, e ao sair o resultado oficial da eleição de JK, a polícia udenista, em Dores, proibiu qualquer comemoração. Naquela fase, a polícia se dividia: parte era udenista, parte era pessedista. Num dia só, meu pai foi preso duas vezes, porque estava a comemorar a vitória do seu candidato. A polícia prendia e Valdeck Figueiredo Melo, o fazendeiro mais rico da cidade, soltava. Era sogro do juiz de direito de Japaratuba e futuro desembargador Luciano França Nabuco. Na primeira vez, meu pai foi preso sozinho; na segunda, com outros parentes, uns dez, mais ou menos, mas, sob a condição de levarem para o xadrez as bebidas que estavam a beber, na Praça do João Ventura. Condição aceita pela polícia. Era farra. Era comemoração. Na família, era voz corrente que “seu” Maneca não respaldara as prisões.

Na bodega, na roda de amigos, meu tio Vangelo alardeava que a eleição de Luiz Garcia seria anulada. Eram, segundo ele, favas contadas. Leite Neto, deputado federal e líder maior do PSD, que seria eleito senador em 1962, já teria impetrado um recurso no Rio de Janeiro, ele dizia. Logo, logo, a UDN estaria de baixo. Em novembro de 1959, o coração do meu tio não quis esperar pela decisão favorável ao recurso, que, contudo, nunca viria. Eu completaria cinco anos de idade em janeiro seguinte. Meu tio chamou toda a família, para se despedir, dias antes de morrer. Como eu poderei esquecer da tarde que ele me chamou e disse: “Esta é a última vez que o seu tio vai lhe abençoar”? Com quatro anos e dez meses de idade, eu abracei o meu tio-avô, que era muito mais avô do que tio, e desandei a chorar. Chorei como um bezerro desmamado, como se diz no vulgo. Perdi o meu tio, que morreu um dia depois. E o partido dele perdeu o tal recurso, com que ele tanto sonhou.

*Professor da UFS, Membro da ASL, ASLJ, ASE, ADL e IHGSE.

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