Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Geralmente associado (mas não necessariamente) a grupos políticos de esquerda, o movimento estudantil vive uma crise importante que é também a crise da esquerda brasileira. Essa crise tem tudo a ver com o fim da experiência do comunismo em todas as partes do mundo. Especificamente em relação ao Brasil, houve um refluxo do movimento estudantil provocado pela redemocratização do país nos anos 80 do século passado. Quando ocorreu o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Afonso Collor de Mello, o ME ganhou um importante protagonismo puxado pela mídia naquilo que ficou conhecido como “os caras pintadas”. Com a chegada ao poder pelo Partido dos Trabalhadores, a esquerda e o ME também chegaram ao poder e de certa forma se acomodaram. Presentemente, com a nova crise que se abateu sobre a esquerda por conta de seu envolvimento com problemas de corrupção, observa-se um novo refluxo e um inédito avanço da direita estudantil nos campi universitários pelo país afora e, embora a esquerda estudantil ainda seja hegemônica em tais espaços, não consegue mobilizar estudantes para uma participação política mais expressiva. O Brasil sofreu um golpe de estado em 2016 e conhece uma crise política que mistura estado de exceção e democracia e, apesar de não faltarem bandeiras do seu interesse, o movimento estudantil está muito “parado”.
É nesse contexto de refluxo do movimento estudantil brasileiro que, em boa hora, foi lançado em fins de 2017 o novo livro de José Vieira da Cruz (doravante chamado de Vieira da Cruz) sobre o movimento estudantil (VIEIRA DA CRUZ, José. Da autonomia à resistência democrática. Movimento Estudantil, Ensino Superior e sociedade em Sergipe (1950-1985). Maceió: EDUFAL, 2017). Para quem não o conhece, Vieira da Cruz é um historiador sergipano com graduação e mestrado pela UFS e doutorado pela UFBA e que é, no momento, professor e vice-reitor da Universidade Federal de Alagoas. Esse seu novo trabalho é a transformação de sua tese de doutoramento num livro de mais de seiscentas páginas. Isso é dito, não com o objetivo de desestimular a sua leitura, mas para dar uma ideia da qualidade e da densidade da obra desse jovem historiador. Vamos dar mais algumas informações sobre o livro.
Com a publicação desse livro, Vieira da Cruz se tornou “o dono do assunto” em Sergipe e, por conseguinte, também no Brasil em tratando de estudos regionais. O seu livro é uma passagem obrigatória para quem quer que deseje ou queira entender ou escrever sobre o seu tema. Como o jovem historiador social Vieira da Cruz, que se quer próximo da historiografia inglesa (Thompson etc.), dos trabalhos de Ibarê Dantas sobre a política sergipana e de autores como Sirinelli e Gramsci, confeccionou esse trabalho tão interessante? Embora seja um livro derivado de sua tese, o autor já tinha trabalhado sobre o assunto quando escreveu sua dissertação de mestrado. Enquanto professor substituto da UFS, pôs de pé projeto de pesquisa que atraiu o interesse de muitos estudantes de História, que escreveram diversas monografias sobre o assunto e sob a sua orientação. Desse modo, acumulou muitos dados e muitas reflexões que ele desenvolverá e aprofundará no doutorado. Vieira da Cruz, escrevendo seu trabalho, fez uso de uma enormidade de fontes bibliográficas, documentais e pessoais, com isso mostrando elogiável capacidade de organização e de sistematização. Sendo um pouco mais concreto, chama a atenção do leitor a gigantesca lista de livros e artigos consultados, bem como a descoberta de grande de documentação encontrada em arquivos dentro e fora da UFS, mostrando que não era correta a afirmação corrente entre certos pesquisadores de acordo com a qual essa documentação sobre o movimento estudantil ou não existia ou teria sido destruída. Por último, realizou um conjunto de entrevistas com ex-militantes estudantis e partidários, o que deve lhe ajudado a compreender melhor os processos em que estavam envolvidos os ativistas estudantis da UFS e preencher vazios encontrados na documentação e na bibliografia.
O título do livro diz muito sobre o livro, que está estruturado em duas partes. A primeira enfoca o ativismo estudantil das seis primeiras faculdades e escolas superiores de Sergipe, desde a sua fundação em fins dos anos 40 do século indo até o golpe militar de 1964 e a consequente instauração do regime militar (1964-1985). O contexto dessa fatia histórica é marcado por lutas entre forças políticas nacionalistas e entreguistas, por instabilidade política materializada mediante tentativas de golpes de estado, vasta mobilização de setores populares visando a realização das famosas reformas de base (rural, urbana, educacional, etc.). É dentro desse quadro que os universitários sergipanos se engajam tanto cultural como politicamente, primeiro sob a hegemonia da Juventude Universitária Católica (JUC) que, até o golpe vai perdendo militantes que procuram ações mais avançadas do que a evangelização e que fundam a dissidente Ação Popular (AP) e sofrendo perda de espaço para militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), geralmente oriundos do viveiro de ativistas comunistas que era o Colégio Ateneu Sergipense. Nesse período, os ativistas tiveram uma importante atuação cultural através de sua participação no Movimento de Educação de Base (MEB), do CPC da UNE volante, do CPC da UEES, da montagem de peças teatrais, de suas lutas pela reforma universitária, pela representação estudantil de 1/3 em órgãos deliberativos e pela construção de uma universidade em Sergipe, entre outras ações, sempre motivadas para a conscientização e mobilização dos setores populares e os próprios estudantes para as mudanças propaladas. Nesse período, os estudantes universitárias estavam na “situação”, posto que estavam ao lado do governo reformista do presidente João Goulart no Brasil e do governador também reformista Seixas Dória em Sergipe e da Igreja Católica sergipana comandada pelo arcebispo progressista Dom Távora. Com o golpe de 1964 foi jogado um balde de água fria em toda essa mobilização cultural e política e teve lugar uma desestruturação das organizações estudantis, tendo ocorrido, inclusive, prisões de muitos desses ativistas universitários. Aconteceu então o fim da autonomia, da liberdade de organização e de expressão dos estudantes, com o que se abre a segunda parte do livro que trataremos a seguir.
A segunda parte do livro trata da resistência dos universitários sergipanos até o fim do regime militar em 1985, quando os universitários passam a atuar na “oposição”. Trata-se de uma fase histórica caracterizada pela internacionalização da economia e pelo entreguismo, no meio da qual dá-se a fundação da UFS pelo regime militar – o que lhe deu aos militares uma certa legitimidade entre os sergipanos e que forneceu ao processo de resistência estudantil uma certa originalidade em comparação com outros estados brasileiros que já possuíam universidades privadas e públicas, estaduais, federais e da Igreja Católica. É nesse novo período que tem lugar a restruturação das organizações estudantis depois da repressão e da tentativa do regime militar de refundar o movimento estudantil à imagem dos militares. É claro que isso não deu certo e, agora sob a liderança de jovens ligados ao PCB, observa-se um conjunto de atividades que são mais políticas do que culturais. Os universitários se levantam contra os esforços militares para tutelá-los (via Reforma Suplicy), de novo participam dos debates sobre a criação da Universidade Federal de Sergipe e não faltam ao famoso encontro da UNE em Ibiúna no interior de São Paulo, quando são presos e em seguida enviados para Sergipe. Isso ocorreu justamente depois da ação corajosa de terem fundado o primeiro Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFS. É isso o que o autor chama de “novo ciclo repressivo” dos militares contra os estudantes. Diferentemente de Vieira da Cruz, nós classificaríamos esses ciclos repressivos em quatro, sendo o primeiro em 1952, quando teve lugar uma caça aos comunistas em Sergipe e pelo menos três estudantes universitários foram presos no quartel do 28 BC; o segundo ocorreu em 1964 por ocasião do golpe militar; o terceiro em 1968 com a edição do AI-5 e o quarto ciclo em 1976 quando da realização da Operação Cajueiro, comandada pelo Exército e que prendeu e torturou estudantes universitários que compunham a Ala Jovem do MDB. Em outras palavras, incluiríamos mais um “ciclo” e destacaríamos o de 1976.
Ainda nesse período histórico, uma nova geração de ativistas estudantis comunistas aparece e vai marcar a política sergipana até hoje. Em seguida, com o definhamento do grupo de estudantes do PCB, ascendem ao palco político grupos ligados ao PCdoB, do PT, entre outros mais, fazendo assim uma renovação das elites políticas estudantis. Não se pode esquecer que nessa nova fase havia o cerceamento das atividades políticas dos estudantes por conta da Assessoria de Segurança e Informação (ASI), instalada no prédio da reitoria da UFS. Mesmo assim, os estudantes universitários reabrem o Diretório Central dos Estudantes da UFS e outros diretórios acadêmicos da instituição, têm participação nos Conselhos Superiores, somam-se ao movimento pela Anistia e participam da grande mobilização pelas eleições diretas para a presidência do país. Analisando os dois períodos globalmente (autonomia e resistência), pode-se concluir que acumularam derrotas e vitórias, avançaram e recuaram, em suma, estiveram presentes nas grandes lutas educacionais, sociais e políticas do período tratado pelo autor e contribuíram para o estabelecimento de uma nova ordem democrática no Brasil.
Como qualquer outro livro de qualquer autor, consagrado ou não, essa história do ativismo universitário sergipano tem seus problemas e seus méritos. Não nos pareceu suficientemente claro e cartesiano o primeiro capítulo do livro. Embora tenha a seu favor uma revisão bibliográfica que parece completa, o excesso de erudição e informação pode ter atrapalhado o processo de exposição do conteúdo desse capítulo. Os demais capítulos do livro nos passaram a impressão de um autor seguro e determinado que é, além do mais, um bom analista político. A sua narrativa não deixa dúvida sobre o seu controle das instituições, dos processos, dos atores e das lutas que são abordadas no livro. Se tivéssemos de opinar sobre a parte mais interessante do livro, diríamos que é aquela que traz mais dados e informações sobre os primórdios do movimento estudantil da UFS. Nessa parte o autor mostrou muita criatividade e habilidade intelectuais para construir a sua narrativa de jovem historiador já tarimbado.
A quem esse livro é recomendada a leitura? Acreditamos que um conjunto variado de leitores pode ter interesse nessa obra. Todos os grêmios e centros acadêmicos necessitam ter exemplares desse livro, o que vale também para todas as escolas secundárias e instituições de ensino superior em Sergipe. Embora ainda útil, aquele livrinho chamado de “O poder jovem”, de Arthur Poerner, já está muito ultrapassado. Ex-militantes dos dois períodos cobertos pelo livro terão um grande prazer em degustar página por página dessa obra. Em nossa opinião, a reitoria da UFS deveria, além comprar diversos exemplares e disponibilizá-los a estudantes e professores de graduação e de pós-graduação, deveria envidar esforços para repatriar para os quadros dessa instituição de ensino esse historiador de mão cheia que trabalha presentemente em Alagoas. O Departamento de História da UFS precisa de historiadores que também se interessem pela nossa história, como já ocorreu em tempos atrás. A transferência de Vieira da Cruz da terra dos marechais para Sergipe significaria que as muitas pistas e trilhas abertas por esse historiador terão continuidade. Não é muito agradável para esse jurista ouvir de certos professores e pesquisadores daquele departamento que não escrevem sobre a história sergipana porque ela não atrai o interesse de seus colegas de outros estados.