Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Décadas atrás, fui designado pró-reitor da UFS. No momento da posse, fiz um discurso de protesto contra o uso do espaço da instituição para fins religiosos. Isso mesmo. Todos os dias, de segunda a sexta, por volta das dez horas, alguém circulava badalando um sino pelos corredores da Reitoria fazendo chamada para realizar culto católico. Eu entendia que quem desejasse usar o local para rezar, orar, ler a Bíblia ou qualquer outra coisa do gênero, devia fazê-lo no intervalo do almoço, depois da jornada de trabalho ou então procurasse a sua igreja mais vezes para atender suas necessidades espirituais, religiosas ou místicas.
O discurso provocou certo desconforto entre os presentes ao Conselho Universitário (CONSU) da UFS, espaço de deliberação máxima da instituição. Não me importei porque estava na UFS para ser professor e não administrador. Na primeira segunda-feira após o evento, dia das reuniões da cúpula da reitoria, o falecido professor Arivaldo Montalvão, gente muito boa representando o seu grupo religioso, incluiu o assunto do discurso à pauta daquela tarde. Dois ou três pró-reitores me defenderam e aquela história acabou. Por que fiz tal discurso? Respondo que era, e ainda sou, defensor do Estado laico e considero que religião e universidade devem ser respeitadas, mas não combinam. A primeira por ser dogmática, absoluta e assentada na fé dos indivíduos que professam esse ou aquele credo religioso, enquanto a segunda, a universidade, pauta-se no debate científico, na pluralidade cultural e nos princípios constitucionais da laicidade, impessoalidade, legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência e eficácia. Dito isto, preciso fazer um pequeno relato sobre a religião na UFS.
Com a sua fundação em 1968, a UFS incorporou faculdades que pertenciam à Igreja Católica, isto é, a Escola de Serviço Social e a Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, esta última responsável pelas faculdades com licenciatura. Um de seus fundadores foi o então padre José Luciano Cabral Duarte, que contribuiu para realizar o projeto de universidade puxado pelos estudantes e professores das seis escolas de ensino superior existentes no início da década de 1960. O que fez o governo federal? O mesmo que já vinha fazendo desde a década de 1950 nos demais estados da federação brasileira. Primeiro, federalizou as escolas e faculdades e, em seguida, em 1968, incorporou-as à universidade federal, a primeira e única de Sergipe. À época, o já arcebispo Luciano Duarte, possivelmente alimentou expectativas de ser apontado como primeiro reitor, considerando o seu prestígio político e o seu trabalho dedicado ao objetivo de criar essa instituição de ensino superior.
Entretanto, os militares preferiram escolher o médico e professor de Medicina João Cardoso do Nascimento Jr. Por que fizeram assim? Talvez para impedir que o já poderoso arcebispo de Aracaju se tornasse ainda mais poderoso administrando a primeira universidade sergipana. Mas, como uma espécie de compensação, considerando as afinidades do referido religioso com o pensamento castrense, indicaram-no para o Conselho Federal de Educação, em Brasília. Ainda assim, o arcebispo exerceu uma influência muito grande sobre a UFS por muito tempo porque tinha “afilhados” plantados em quase todos os departamentos. Eu considero que essa influência, se não acabou, pelo menos ficou muito reduzida com as aposentadorias de muitos de seus seguidores e com a grande quantidade de concursos autorizados pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff que resultou na contratação de professores sudestinos e sulistas, sem vínculos com a sociedade sergipana.
Já escrevi em mais de uma oportunidade que, até a primeira eleição direta para reitor, os reitores da UFS não passavam de interventores federais indicados pelos generais, pois a UFS, embora tenha sido uma reivindicação da sociedade, foi obra do regime militar. Neste sentido as nomeações de João Cardoso do Nascimento Jr., Luiz Bispo, José Aloísio de Campos, Gilson Cajueiro de Holanda e Antônio Eduardo Conde Garcia fizeram deles reitores biônicos ou gestores não eleitos. É apenas com Clodoaldo de Alencar Filho, professor do curso de Letras, que os reitores passaram a ser eleitos diretamente pelos três segmentos (professores, estudantes e servidores) da comunidade universitária. Desse processo seletivo passou a ser retirada uma lista tríplice com os nomes dos candidatos mais bem votados para confirmação pelo Conselho Universitário da UFS. Dos três nomes, qualquer um deles podia ser escolhido pelo presidente da República. Esse processo de seleção de reitores se confundiu com a redemocratização do Brasil até o ano de 2020. Eleição direta e lista tríplice se tornaram um costume democrático que, desgraçadamente, sofreu um atentado em novembro de 2020 por parte do atual ministro da Educação, um presbiteriano com raízes na ultraconservadora Universidade Mackenzie de São Paulo.
O que aconteceu no fim do ano passado quando a nova “reitora” foi indicada? A UFS voltou à tradição dos antigos interventores nomeados pela ditadura militar, ou, de dito outro modo, voltou ao tempo dos reitores biônicos. Isso ocorreu, passando por cima da lei, com a decisão do ministro da pasta educacional do governo extremista de Jair Bolsonaro. Ele, o referido ministro Milton Ribeiro, a serviço do presidente da República, acha-se livre para arbitrariamente nomear reitor qualquer professor sem seguir a ordem retirada das eleições ou mesmo alguém que não tenha participado do certame eleitoral, como é o caso da atual interventora. A partir dessa perspectiva, mesmo com o Ministério Público Federal e a Justiça Federal tendo julgado o processo eleitoral completamente legal e sem irregularidades, o ministro da Educação impôs uma interventora evangélica que, por sua vez, nomeou quadros da alta administração, usando como critério de seleção o seu pertencimento religioso! Dito de outra forma, a interventora trocou quadros da administração adotando o critério de ser evangélico para substituir os gestores demitidos. Uma aberração!
Em que ponto está a universidade federal? A UFS retrocedeu aos tempos sombrios da ditadura militar, período no qual a instituição não gozava de autonomia e estava sob o controle dos militares. Isso significa dizer que uma reitora indicada, através de decisão ministerial, à margem da lei, sem nenhuma legitimidade, aparelhou a administração da UFS de evangélicos como ela. Eu não sei se essa volta aos modos da ditadura e agora também sob a tutela de uma igreja evangélica foi objeto de pronunciamento da parte da classe política sergipana na Câmara de Deputados, no Senado, na Assembleia Legislativa, pelo prefeito Edvaldo Nogueira e pelo governador Belivaldo Chagas. De qualquer maneira, gostaria de perguntar o seguinte. Por quanto tempo essa interventora evangélica, que não participou das eleições, continuará ocupando a reitoria da UFS ilegalmente? Por quanto tempo a sociedade, os movimentos sociais e a classe política se acomodarão a esse atentado contra a autonomia universitária, contra Sergipe e contra a democracia?