Uma visita ao “Gabinete Maruinense de Leitura”

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

No começo de 2019, conseguimos realizar um projeto de turismo cultural, visitando o Gabinete Maruinense de Leitura, localizado na cidade de Maruim, em Sergipe. Já tínhamos estado lá em 2018, só que num fim de semana, quando essa instituição fundada em 1877 fica fechada. Essa viagem perdida aconteceu porque pensamos que o famoso gabinete fosse uma atração turista.

Antes de prosseguir, devemos explicar ao leitor o que é um “gabinete de leitura”. Em quase todas as províncias brasileiras foram criados esses espaços culturais tomando como modelo Real Gabinete Português de Leitura, um exemplo de beleza arquitetônica por fora e, por dentro, muitos objetos de arte por toda a parte, além de preciosidades em termos de livros e impressos em geral. Depois dessa rápida aproximação, precisamos fazer uma parada na França, onde esses gabinetes de leitura conheceram uma expansão impressionante, superando a Inglaterra e a Alemanha, e cobrindo grandes partes do território francês.

É preciso destacar que, na França, a expansão dos gabinetes de leitura ocorreu depois da Revolução Francesa(1789), como modo de difundir a cultura letrada numa sociedade em que o letramento da população estava longe de ser universalizado. Outro ponto que merece ênfase é que os gabinetes franceses de leitura, conhecidos como boutiques à lire eram privados e os seus proprietários alugavam livros, entre outros impressos a pessoas que não podiam comprar esses bens culturais. Voltemos a Sergipe.

Na literatura consultada sobre o assunto, ficamos sabendo de dois casos de gabinetes de leitura no Ceará e Alagoas permitiam o acesso gratuito aos interessados e, além disso, estavam ligados ao sistema de ensino. Esse não foi bem o caso do Gabinete Maruinense de Leitura, idealizado pelo cônsul alemão Otto Schramm, morador de Maruim, num contexto de economia escravista. Com efeito, foi criado para ser um clube social e cultural privado ao qual só tinham acesso os membros da instituição, ou seja, pessoas da aristocracia rural, de comerciantes, estrangeiros e diversos tipos de funcionários públicos. A sua natureza classista é inegável. É verdade que essa condição foi sendo modificada do século XIX ao século XXI, sendo transformado o gabinete de espaço particular a espaço público, primeiro federal, depois estadual e municipal, até ser o que é hoje: uma biblioteca pública municipal. Dito de outro modo, seu itinerário evoluiu de biblioteca privada de elites sociais, profissionais e culturais a uma biblioteca pública em condições precárias que espera mais atenção dos seus gestores. Tratemos mais precisamente de nossa visita recente.

O Gabinete Maruinense de Leitura está situado na praça principal da cidade, a Praça Barão de Maruim, de frente para a linda Catedral, tendo a seu lado esquerdo o prédio da Prefeitura pintado todo de azul e branco, exatamente como o gabinete. O prédio em que está o gabinete foi comprado e doado, em 1926, pelo governador Maurício Gracho Cardoso, o político que mais contribuiu para a educação e a cultura na história de Sergipe. De imediato, percebemos que o prédio do gabinete não era obra do governador que mais contribuiu para o desenvolvimento da educação e da cultura, por causa da ausência da águia que é a marca de suas construções.

Para entrar no recinto, é preciso vencer alguns degraus e, de um lado e de outro de sua porta principal, ainda do lado de fora, estão expostas duas estátuas, uma de Clio simbolizando a História e outra de Minerva representando as artes, a cultura. No seu saguão, tem um busto de mármore de João Rodrigues da Cruz, patrocinador do gabinete, e algumas placas sobre as quais mais adiante falaremos. O visitante fica então com duas opções. Se entrar pela porta direita, encontrará uma pequena biblioteca moderna com livros mais recentes e um espaço usado por estudantes para fazer tarefas escolares. Essa parte nada tem de interessante. Ao entrar pela porta esquerda, lá está o que sobrou do famoso gabinete de leitura. Devemos confessar que esperávamos mais, mas não nos impediu apreciar a beleza do gabinete de leitura.

O chão é feito é de azulejos brancos e pretos, cuja procedência nos é desconhecida. Não perguntamos e ninguém nos respondeu se, quando da sua construção, o assoalho era de madeira – como costuma acontecer com instituições desse tipo. O forro abaixo do teto é de material contemporâneo (PVC), e possui diversas placas faltando. Se o telhado não for bem cuidado, chuvas fortes podem pôr em risco o seu acervo que serve para contar a história dos livros, das leituras e dos eleitores em Sergipe e, por conseguinte, a história das elites dirigentes sergipanas.

A sala do acervo possui mais ou menos uns sete metros de cumprimento, enquanto, em termos de largura, tem uns três ou quatro metros. De um lado e de outro da sala, existem dez estantes de madeira de lei, originais, todas com vidro, o que permite ao visitante com algum esforço identificar os nomes dos livros e de seus autores. Dentro das estantes, os livros estão dispostos em posição vertical e horizontal. Os livros em estado mais precário estão na horizontal. Fizemos um tour das dez estantes e reconhecemos muitos autores e títulos. Tem livros que têm a ver com profissões ou técnicos; alguns livros são de filosofia e outros mais são romances. Ali podem ser encontrados livros em português e francês, a língua estrangeira mais importante à época em termos culturais. Não avistamos livros em outras línguas. Notamos a falta de romances brasileiros do século XIX.

Os livros mais antigos estão dispostos nas primeiras estantes, de um lado e de outro da sala. No fundo estão expostos livros de referência como dicionários, enciclopédias e outras obras recentes. Não podemos deixar de dizer que, no centro da sala, existem quatro ou cinco mesas com cadeiras que parecem ser aquisições bem recentes e que, entre a terceira e quarta estantes do lado esquerdo, lá está outro busto que, segundo funcionária, é do barão de Maruim, um rico latifundiário e político da cidade.

Não podemos afirmar que não existem certos documentos no Gabinete de Maruim que nesses espaços são geralmente encontrados. Sentimos a falta de um livro de atas, de um estatuto (ou mais de um porque o gabinete mudou de forma jurídica ao longo do tempo) da instituição, um livro antigo com as assinaturas dos tomadores de empréstimos de livros, entre outros. Coisa muito mais grave: não existe um catálogo com todas as obras e impressos! Sabemos que existiu um jornal literário (Revista Literária) que teve curta duração.

Muito acima, antecipamos que há algumas placas no saguão do gabinete. Uma delas é da Academia Maruinense de Letras. Pensamos que não havia lugar mais apropriado para uma academia, com membros locais e de outras cidades. É nesse mesmo gabinete que são realizadas as reuniões da academia – da mesma forma que nesse espaço eram realizadas conferências, palestras etc. de muitos intelectuais sergipanos, a exemplo de Tobias Barreto, Felisbelo Freire, entre outros, nos tempos de glória do gabinete. Foi isso, aliás, que nos deixou um tanto decepcionado. Como é que homens e mulheres intelectuais, membros das elites sergipanas, se permitem deixar que aquele tesouro fique abandonado, a deteriorar-se com o avanço do tempo?

Não coletamos a informação sobre o fato de o Gabinete Maruinense de Leitura ter sido ou não tombado pelo IPHAN. Sabemos, sim, que esse gabinete de leitura é, aparentemente, o único sobrevivente das demais instituições do gênero que existiram em Sergipe, também no século XIX, nas cidades de Laranjeiras, Estância, Itabaiana e Riachuelo. Em nossa opinião, transformar esse gabinete de leitura que tem atravessado três séculos (o século XX inteiro e duas fatias históricas parciais dos séculos XIX e XXI) num museu seria a coisa acertada a ser feita. O que as autoridades culturais e políticas municipais e estaduais estão a esperar para fazer o que já deveria ter sido feito?

PS: Nossos agradecimentos a Joelma Ferreira Martins, diretora do gabinete que nos concedeu duas entrevistas por telefone e que não é responsável por nada do que foi dito no texto acima, e aos demais funcionários que nos atenderam muito gentilmente.

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