UTIs: exemplo de humanismo e ciência na luta contra a Covid-19

Almiro Alves de Oliva Sobrinho – Médico pneumologista e intensivista do Hospital São Lucas, Rede D’Or São Luiz Médico intensivista do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe

José Augusto Soares Barreto Filho – Médico cardiologista do Hospital São Lucas, Rede D’Or São Luiz – Professor de Cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Sergipe


A pandemia da Covid-19 continua assustando o mundo por seu poder de devastação e morte e as novas cepas emergentes do SARS-CoV-2 preocupam e dificultam prognosticar quando voltaremos “ao nosso normal”.


Paralelamente, ainda vivenciamos uma outra pandemia global, amplificada no Brasil, que se caracteriza pelo alastramento de informações falsas, divulgação de opiniões dogmáticas emitidas por pseudoespecialistas e debates intermináveis iluminados por notório viés ideológico. Felizmente, a resposta da ciência tem sido firme, consistente, competente e pautada na evidência factual e no bom senso do consenso de especialistas. Aos poucos, a verdade científica tem prevalecido.


Assim como em crises e tempos de guerras, a pandemia da Covid-19 tem trazido bons ensinamentos. No seu transcorrer, parte do conhecimento científico já acumulado tem sido testado, e as “certezas científicas” de outrora ou estão se firmando ou estão sendo abandonadas, dando vez a novas dúvidas. Por conseguinte, novos conhecimentos estão sendo gerados e novos “constructos” estão sendo erguidos e tornando-se novas certezas, mesmo sabendo-se que tempos depois serão sobrepujadas por um conhecimento novo ainda mais refinado, assim é a sina e o caminho da boa ciência.

Neste mar revolto de fatos, opiniões e crenças, a Covid-19 tem trazido desafios hercúleos às equipes de assistência médica. Especialmente, no espaço fechado das UTIs, onde a tomada de decisão para salvar vidas exige a celeridade que muitas vezes desafia a racionalidade, a avalanche de tantas informações desconexas e sem filtro foi um obstáculo adicional nessa jornada épica que ainda não findou. Frente a uma demanda física e mental que muitas vezes chega às raias da exaustão, manter-se humano e fiel aos preceitos filosóficos das evidências científicas não tem sido tarefa trivial. Talvez por estarem espacialmente blindados em área física restrita, com menos “ruído das massas”, a terapia intensiva aproveitou esse período de crise para fortalecer seu compromisso humanístico com os que padecem e a sua crença na ciência.


Alguns procedimentos praticados em UTIs, antes prescritos como medida de exceção, ganharam relevância e foram promovidos à categoria de grandes protagonistas nessa luta. Dentre estes protagonistas citamos aqui, o papel da ventilação mecânica (invasiva e não invasiva) e da sedoanalgesia do paciente crítico, nas fases da intubação e da ventilação mecânica invasiva.


A rapidez de alastramento da Covid-19 e o volume de casos internados em UTIs com o diagnóstico de insuficiência respiratória aguda têm exigido dos profissionais envolvidos um racional sofisticado, embasado nas melhores evidências científicas, para atingirem o melhor acoplamento paciente-ventilador capaz de otimizar a fisiologia respiratória, enquanto o pulmão tem a chance de se recuperar, sem incrementar em demasia os riscos relacionados à técnica. Neste tópico, o conhecimento prévio de ventilação mecânica protetora se consolidou e os times de cuidados críticos estão tendo a chance de padronizar e refinar a prescrição da ventilação mecânica pautada nos ajustes finos das pressões, volumes e da proporção de oxigênio (FiO 2 ) tituladas nos mínimos detalhes e na vigilância intensiva da resposta do paciente. A ideia corrente permanece a de ventilar/oxigenar o paciente, causando mínimos aumentos na pressão das vias aéreas, aumentando com isso a probabilidade de recuperação pulmonar. A pronação do doente ventilado mecanicamente, procedimento “culturalmente” subutilizado, também se firmou como importante recurso terapêutico. Neste quesito, uma nova opção fisioterápica surgiu e que deverá se consolidar a partir das evidências que estão sendo sistematizadas. A prona ativa, posicionamento ativo e espontâneo do doente deitado de bruços, para melhorar a ventilação/oxigenação não fazia parte das orientações terapêuticas. Entretanto, atualmente, a prona ativa tem sido recomendada precocemente não só dentro das UTIs, mas orientada para todos os pacientes sob risco de evolução pulmonar desfavorável, mesmo em regime domiciliar.


Outra área que ganhou grande status nas UTIs foi a da farmacologia relacionada à analgesia, sedação e bloqueio neuromuscular do paciente crítico nas etapas da intubação e da ventilação mecânica invasiva, bem como o desenvolvimento de protocolos farmacológicos durante a fase de despertar, tópico que evoluiu em uma velocidade sem precedentes. Por último, do arsenal farmacológico, a única droga específica que passou pelo crivo científico, no estudo Recovery, foi o corticoide, quando prescrito para pacientes com evidências inequívocas de alteração respiratória, fase inflamatória. Se a colchicina ganhará tal status nessa fase, o tempo dirá.


Enfim, aos poucos a poeira vai se assentando e os fatos vão se sobrepondo às ideias sem comprovação empírica. Perceber que a ciência é o melhor caminho para a solução de problemas dessa ordem é um grande legado da pandemia. Por hora, o que temos para acompanhar os portadores de COVID-19 é a vigilância e sintomáticos para os casos leves; e medicina interna/intensiva da mais elevada qualidade humanística e científica para aqueles pacientes que complicam. Nesse mister, o exemplo de abnegação dos seus profissionais e o compromisso com a ciência, durante essa guerra, tornaram as unidades de terapia intensiva, também no nosso Brasil, um espaço de esperança de um mundo mais racional, lógico e solidário.

COLUNA CIÊNCIA E SAÚDE – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE

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