Clóvis Barbosa
Blogueiro e conselheiro do TCE/SE
A minha posse como Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe ocorreu no dia 29 de maio de 2009. Nesse dia comemorava-se a data de nascimento do poeta florentino Dante Alighieri, o grande autor do poema épico A Divina Comédia, um dos clássicos da literatura mundial escrito durante o período renascentista. No discurso, faço uma viagem pelo mundo do amor de dois personagens de Gabriel Garcia Marques, no seu consagrado Amor nos tempos de cólera, nas figuras de Florentino Ariza e Fermina Daza, cujo romance foi obstado pelo pai dela ainda na juventude do casal, somente pelo fato de ele – o pretendente genro – ser um simples telegrafista. Apesar de Fermina desposar um conceituado médico que erradicara a pandemia de cólera que se alastrava por toda a Colômbia, cinquenta anos depois o amor a reaproximava de Florentino, quando ela ainda curtia o luto do falecido marido. Começava, portanto, a ser redesenhado o intenso amor que ambos houveram planejado. O clímax, no entanto, aflui exatamente da conclusão à qual Florentino Ariza chega após ter nos braços Fermina Daza: há limites para a morte; não há limites para a vida. Ainda no campo do amor, transporto-me para outra obra, O Banquete, de Aristófanes, e faço paralelo sobre a duplicidade dos homens, uns duplamente masculinos, outros duplamente femininos e, finalmente, os que eram compostos por uma parte masculina e outra feminina. Sucede que os homens, nessa performance, eram tão violentos que, um dia, resolveram subir aos céus para pelejar com os deuses. Mas perderam a batalha. Como castigo pelo atrevimento, Zeus os partiu ao meio, fazendo com que as metades fossem separadas.
O homem, portanto, na compleição consoante a qual é hoje concebido (ou puramente masculino, ou puramente feminino), vive a vagar, procurando seu outro pedaço, do qual foi afastado pela divindade, assim como o pai de Fermina separou a filha de Florentino Ariza. E concluo com o meu próprio exemplo onde formulo uma síntese ao considerar a família como o futuro do amor – como diria Comte-Sponville, no seu Pequeno tratado das grandes virtudes – ao me conferir paz para velejar tranquilo no oceano da vida. Pois bem. Estou certo de que devo à minha família, à minha metade – Guiomar – aos meus filhos e netos a força para navegar, íntegro e inteiro, no mar colérico que é o mundo. Continuo o meu discurso e falo do realismo encorajador, aquele em que o timoneiro, no comando da embarcação, diante de um mar revolto, ajusta as velas e prossegue na viagem, diferentemente do sujeito pessimista e do utópico. Esse realismo encorajador é que deve ser o verdadeiro combustível que não poderá, jamais, faltar àquele que desenvolve a pretensão de gerir a coisa pública. Parto, então, no discurso, a falar sobre a necessidade de orientar o gestor para não ser necessário puni-lo e, para tanto, conto uma pequena história ocorrida no início da nossa República. Como não havia dotação para a despesa, o tribunal de contas glosou determinada despesa do presidente Floriano Peixoto. Colérico, ele declarou que tal fato só poderia ter saído da cabeça de Serzedello Corrêa, que criara um tribunal que estava acima do Chefe do Executivo. Ao tomar conhecimento do disparate, Serzedello mandou dizer a Floriano que o tribunal de contas não lhe seria superior quando ele agisse conforme a lei.
Mas, ali onde se quisesse tripudiar as leis da república, o tribunal seria superior a qualquer um. Possesso, Floriano mandou reformar o tribunal de contas, ato que fez com que Serzedello Corrêa, então ministro da fazenda, pedisse exoneração. Floriano teve que recuar. Mas a parte da história que interessa neste instante é exatamente essa, a precisa noção que Serzedello possuía do papel dos tribunais de contas: nada, num estado democrático, pode vir à tona ao arrepio das leis legitimamente postas pelo parlamento. Se o parlamento não autorizou o gasto, não haverá gasto. O que for além disso é despotismo, macula a legalidade, emascula a moralidade e defenestra a eficiência das ações públicas. É certo que nem todos políticos são advogados, ou contadores, ou economistas. Muitos não tiveram a efetiva oportunidade de saborear os manuais científicos que ditam regras nas academias de ciência. E, honestamente, os políticos não devem ser doutores da lei, mas mestres da lógica e do bom-senso. É imprescindível até mais bom-senso. Finalmente, disseco sobre a liberdade e a vontade popular, sem necessidade de recorrer ao teólogo Tertuliano, que professava ser o absurdo o alicerce da crença e da fé. Ele dizia: “creio porque é absurdo”. Não! Creio porque é real! A vontade do povo é real! E ela vem à tona quando um chefe de estado se vê ungido pela pia batismal do voto. Irreal, por outro lado, é querer atribuir vontade soberana a um fragmento das massas. É querer dar sopro de vida à patifaria e à arrogância dos que acreditam poder espatifar o sonho plebeu de ver sua geração a ditar os rumos de um governo, já que foi essa a plebe que conseguiu tomar democraticamente o poder.
E concluo o meu discurso louvando e lembrando de figuras humanas da minha geração, já falecidas, que me credenciaram a amar intensamente a liberdade. Para tanto, usei no epílogo da narrativa, numa tradução livre dos versos 71 e 72 do Canto do Purgatório, contido em A Divina Comédia o seguinte: “Cuida da liberdade com a sabedoria de quem sabe que a liberdade é mais importante do que a própria vida”, ou “libertà va cercando, ch’è sì cara, come sa chi per lei vita rifiuta”. E por que todo esse intróito para falar numa ficcional viagem ao inferno? É porque a humanidade continua fracassando na prática dos verdadeiros objetivos que foram demandados para todos nós nessa vida terrena. Como ninguém quer escutar, é importante que a gente sempre esteja repetindo os exemplos colhidos da história e da literatura. Não tem jeito, ninguém é imortal. Aqui é uma passagem ou uma viagem no trem da vida onde, em cada estação, uns desembarcam e outros embarcam. Quem pratica o mal um dia vai colher esse próprio mal. A natureza é bastante pródiga ao subentender que não existe punição, mas a colheita daquilo que plantamos. E essa colheita do mal que fazemos pode ocorrer no inferno, local em que todos os personagens se encontram e se descobrem, numa autêntica desmistificação da hipocrisia. E pra falar do inferno, não existe maior autoridade do que Dante Alighieri. A sua obra A Divina Comédia, feita em versos, é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma delas possui igualmente 33 cantos, sendo o próprio Dante o principal protagonista da viagem a esses três espaços totalmente distintos. É no inferno que determinado tipo de gente morre afogado no próprio vômito.
Ao longo do caminho, Dante cruza com muitos amigos, conhecidos, figuras exponenciais da política e da cultura, ricos e pobres que passaram pela sua vida. Para atravessar o inferno, convidou o poeta romano Virgílio, o grande autor de Eneida, para acompanhá-lo. Percebem-se nos versos, aqui e ali, que a grande trilha que deve ser perseguida pelo homem na terra é a do bem e da ética. Fora disso, o inferno está a esperar. Debaixo de Jerusalém – centro do hemisfério boreal – é que está situado o inferno, segundo o autor florentino. Na entrada existe um anteinferno, onde ficam as almas recusadas por Deus ou pelo Diabo. Nove círculos dividem sua área, estando nos cinco primeiros – o alto inferno – o limbo, onde ficam as almas dos não batizados, os sensuais, os gulosos, os avarentos, os pródigos e os iracundos. Já o baixo inferno acolhe os hereges e os incrédulos, os que pecaram pela violência contra o próximo, contra si mesmos e contra Deus. Temos ainda os 10 fossos que castigam os sedutores, os aduladores, os simoníacos, os adivinhos, os fraudulentos, os hipócritas, os ladrões e corruptos, os maus conselheiros, os fundadores de seitas e os falsários. Enfim, os traidores da família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores. No ponto mais baixo do inferno, que é também o centro da Terra, habita o Diabo, o Satanás, o Lúcifer. Interessei-me em saber sobre o destino dos gulosos, avarentos, hipócritas, corruptos e aduladores. O que o inferno preparou para recepcionar essas figuras hediondas que fazem parte do nosso dia a dia e que estão em toda parte? O interessante é que a chance dessa alcateia ir para o Paraíso ou para Purgatório é zero. Para esse tipo de gente está reservado o terceiro círculo do inferno de Dante.
Eles são colocados num pântano fétido cheio de vômitos e fezes, onde são obrigados a beberem continuamente a sua água imunda. O exemplo dado por Dante, ao citar as agruras de Ciacco, lembrou-me uma figura conhecida que faz da gula a razão de sua vida. É chamado, como Ciacco, de “Porco”. Quando ele se aproxima em qualquer lugar, as pessoas dizem logo: – Já vem o porco. O avarento vive para acumular bens materiais. No inferno, passa dia e noite empurrando pesos enormes. Os hipócritas, corruptos e aduladores ficam em um dos dez fossos e ali são castigados impiedosamente. Assim padecem essas almas cartilaginosas que em vida cometeram tantos desatinos. Sobre a vida, não sei se a humanidade faliu, mas como dizia Woody Allen, mais do que em qualquer época, ela está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber escolher.
Clóvis Barbosa escreve aos sábados, quinzenalmente